good kid, m.A.A.d city: a Odisseia de Kendrick Lamar

A infância do garoto de Compton contada por ele mesmo, e o que faz desse álbum o melhor da década.

Rahif Souza
7 min readFeb 14, 2019

Pensar em grandes artistas dos anos 2010 é consequentemente falar de Kendrick Lamar, considerado hoje não apenas um dos maiores da história do rap, como também da música. E não é difícil pensar no porquê de toda essa admiração: Kendrick possui uma discografia impecável, da qual três discos se destacam pelas suas mensagens, conceitos e inovações musicais: good kid m.A.A.d city (2012), To Pimp a Butterfly (2015) e DAMN. (2017). As três obras são impecáveis, e a de 2012, apesar de hoje aparentemente ser a menos aclamada pela crítica, merece ainda mais destaque, já que ela apresenta uma narrativa épica e uma sonoridade que lembra os grandes discos de hip hop da década de 90, prendendo a atenção de qualquer ouvinte; A sua contribuição para a indústria musical e a relevância de sua mensagem é atemporal. Mas por que good kid, m.A.A.d city merece esse reconhecimento?

Compton, a m.A.A.d city

Para compreender o porquê good kid, m.A.A.d city é uma obra tão incrível, temos que analisar tanto a história de Kendrick quanto outros elementos externos que envolvem o álbum. Lamar nasceu em 1987, na cidade de Compton, na Califórnia, e se você é um fã mais assíduo de hip-hop, já deve ter ouvido falar desse lugar: Compton por muitas vezes é considerada o berço do rap, já que foi a partir de lá que o West Coast hip-hop foi consolidado e deu origem a um dos subgêneros mais importantes do rap, o gangsta; nomes como Dr. Dre, Ice Cube (que faziam parte do N.W.A, um dos grupos mais importantes da história do gênero), e Mc Eiht surgiram na cidade californiana.

O N.W.A, uma das maiores influências do hip-hop de todos os tempos, e originalmente de Compton — Imagem via Mixmag

Compton também sofreu com altos índices de violência nos Estados Unidos, especialmente nas décadas de 80, 90 e 2000; os maiores fatores que contribuíram para isso foram o grande número de gangues que ali viviam, e que entravam em conflito constantemente por diferenças étnicas, além dos frequentes abusos policiais. Foi nesse ambiente que K-dot cresceu e que também serve como cenário para o disco; nesse sentido, good kid, m.A.A.d city é um relato não apenas da infância/juventude de Lamar, mas da história de Compton.

Um curta-metragem de Kendrick Lamar

GKMC e seus componentes estruturam uma história comparável ao roteiro de um filme; Desde a arte da capa (uma imagem de Kendrick quando criança, cercado por dois tios — um deles fazendo o sinal dos Crips, uma das maiores gangues da Califórnia — e um avô), até os diálogos que aparecem na transição entre uma canção e outra, todos os elementos e a sonoridade do álbum puxam o ouvinte para o universo do rapper, como se também participássemos daquele mundo. Não à toa, o subtítulo do disco é intitulado A Short Film by Kendrick Lamar.

A sequencia de faixas obedece a uma ordem não cronológica na narrativa, e leva a diversos lugares e reflexões. Nesse sentido, good kid, m.A.A.d city tem duas direções: Primeiro, a perspectiva de Kendrick nos dias de hoje, representada por Bitch Don’t Kill My Vibe e Compton. Especialmente na segunda faixa citada (que contém participação do lendário Dr. Dre), Lamar reflete sobre o passado em Compton e como tudo que envolve a cidade o transformou na pessoa/artista que ele é.

Kendrick Lamar e Dr. Dre formam um dos feats. mais incríveis da história do Rap na faixa ‘Compton’ — Imagem via Bantumen

Apesar de conhecer vários membros de gangues, Lamar nunca se envolveu de fato com os conflitos, se tornando um ótimo aluno na escola e focado apenas na música, mesmo com a violência fazendo parte da sua vivência desde cedo (o rapper citou em uma entrevista que viu uma pessoa sendo morta pela primeira vez quando ainda tinha cinco anos de idade).

Na outra ponta de good kid, m.A.A.d city, há as histórias de K-dot quando mais novo; são apresentados problemas de qualquer jovem que cresce em uma vizinhança violenta, de forma imersiva e detalhista, e que assim como na literatura, acentua ainda mais o efeito de realidade na narrativa. As músicas seguem um conceito de storytelling e a história fica clara quando prestamos atenção nas letras, apesar de, como foi dito, não haver uma ordem cronológica. A faixa de abertura, Sherane a.k.a. Master Splinter’s Daughter serve como prólogo, e ajuda a entender o que vem a seguir, já que nela é apresentado Sherane, uma das primeiras paixões da infância do cantor, e todos os problemas que envolvem a sua relação com a garota (os primos de Sherane são afiliados de uma gangue, e aparecem mais adiante nas faixas Poetic Justice, good kid, m.A.A.d city e Swimming Pools (Drank), com um papel bastante importante, já que eles são responsáveis pela morte de um dos conhecidos de Kendrick, o que desencadeia a temática mais violenta do álbum).

Kendrick e a suposta Sherane citada em good kid, m.A.A.d city (nunca foi confirmado se essa realmente é uma das personagens centrais do disco) — Imagem via Reddit

Backseat Freestyle, The Art of Peer Pressure e Sing About Me, I’m Dying of Thirst contam de forma singular como é a pressão de ter que agir com determinada atitude para se inserir em um grupo — algo mais do que comum pra quem se afilia a gangues, por exemplo. Backseat Freestyle é intencionalmente imatura (o refrão “I pray my dick get big as the Eiffel Tower/So i can fuck the world for seventy-two hours” exemplifica isso), já que essa funciona como a primeira parte, a tentativa inicial de impressionar esse grupo; The Art of Peer Pressure é o relato real do cantor em suas “missões” com seus amigos, e o comportamento condicionado por ações de outras pessoas; Sing About Me, I’m Dying of Thirst é o afastamento desse ciclo de violência à partir da morte do irmão de um amigo de Lamar (relatado no final de Swimming Pools), e o mesmo acaba percebendo que toda essa raiva e perturbação não levam a nada. Real, faixa que encerra a cronologia dos fatos, apesar de ser a penúltima música do álbum, é o descarte da persona gangsta de Kendrick, assumindo sua forma real: “the good kid in the mad city”. Além disso, explicita o papel que sua família teve como base de sua formação, incentivando o mesmo a seguir como rapper.

A mensagem definitiva de good kid, m.A.A.d city

Analisando os discos posteriores de Kendrick, especialmente no caso de To Pimp a Butterfly, temos ali uma exposição clara de problemas estruturais da sociedade americana/capitalista com o jovem negro; Tanto em TPAB como em DAMN., essas questões são expostas de forma muito clara ao público, o que é excelente; entretanto, o que faz de good kid, m.A.A.d city especial em relação aos os outros dois álbuns está relacionado ao fato de que, apesar de ser parcialmente ficcional, ele é carregado de experiências pessoais do próprio Lamar, causando o mesmo efeito que ocorre nos outros dois discos de forma mais chocante, densa e intimista; Em To Pimp a Butterfly e DAMN,. essas experiências também se fazem presentes em algum momento; porém, o formato de narração em primeira pessoa de GKMC torna tudo mais real. good kid, m.A.A.d city faz o papel inverso dos outros álbuns, e parte do individual para o coletivo, a narrativa que conta a tentativa de sobrevivência do “bom garoto” em meio a um ambiente de tanta desordem.

Kendrick Lamar se apresentando em 2013, na turnê de good kid, m.A.A.d city — Imagem via Mandatory

Pra quem nunca procurou entender o contexto do álbum, GKMC pode parecer somente mais um disco de gangsta rap, com histórias sobre violência, crimes e redenção. Porém, o disco permite um grau de reflexão que vai além desses limites; cada faixa nos faz imaginar quantos “garotos bons” vivem em regiões violentas e que, ao contrário de Kendrick, acabam/acabaram se perdendo em meio a esse caos social. Versos como em m.A.A.d city (“If Pirus and Crips all got along/They’d probably gun me down by the end of this song/Seems like the whole city go against me/Every time I’m in the street, I hear/YAWK! YAWK! YAWK! YAWK!”) mostram que é quase impossível fugir desse ambiente de guerra. Por esse mesmo motivo, good kid, m.A.A.d city, muito mais do que apenas um grande álbum (talvez o melhor da década), é uma experiência humanizadora e que desperta empatia pelas milhares de pessoas que vivem em situações parecidas ou pior do que a Compton em que Lamar cresceu; O cenário exposto, apesar de vir de uma experiência pessoal, é mais comum do que imaginamos.

**Kendrick Lamar se apresenta como atração principal no Lollapalooza 2019, em São Paulo, dia 07 de Abril.

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Rahif Souza

Estudante de Letras na UNIFESP, ama música e futebol. Nas horas vagas escreve críticas musicais e maratona animes. e-mail: rahifsouza92@gmail.com