O que faz do sample a maior invenção da música contemporânea?

A história e os motivos que fazem do sample uma ferramenta essencial para a música

Rahif Souza
6 min readMay 31, 2020

O que The Chronic do Dr. Dre, Entroducing… do DJ Shadow, Merriweather Post Pavilion do Animal Collective, Discovery do Daft Punk e My Beautiful Dark Twisted Fantasy do Kanye West tem em comum? Além de serem clássicos lançados nas últimas três décadas, esses álbuns em questão foram criados quase que inteiramente à partir de samples. Isso é somente uma parte que prova como o sampling é o que define a música moderna.

A tecnologia impulsionada pelos samplers digitais nos anos 70 e popularizada pelo hip-hop nos anos 80 dificilmente não é ouvida em todos os estilos, seja no mainstream ou no underground. Mas como a indústria chegou à isso? O que o sample representa além de ser um fragmento de uma canção (ou outro tipo de som) em outra?

O Daft Punk é um dos artistas mais famosos quando o assunto é a utilização de samples icônicos.

O conceito do sample muito antes dos samplers

Apesar do advento dos aparelhos digitais utilizados para criar samples terem sido inventados na metade dos anos 70 (o mais famoso deles sendo o Farlight CMI, que além disso também funcionava como um sintetizador), o conceito de retirada de fragmento de uma canção para ser remodelado em outra vem de muito antes. Como bem explicado por Chris Read, criador e principal fornecedor de conteúdo do site Who Sampled em uma aula na Point Blank Music London (assista aqui), retirar trechos de músicas de outros artistas e reconstruí-los era comum para Ludwig Van Beethoven no século 19, por exemplo.

Além disso, outro exemplo clássico vem do Led Zeppelin; a banda foi acusada diversas vezes de plágio, graças às semelhanças encontradas em algumas linhas instrumentais de suas faixas quando comparadas à de outros artistas. Fato é que, graças à genialidade dos seus integrantes, essas referências sempre foram transformadas em uma sonoridade nova e surpreendente, algo que constitui a principal função de um sample.

No caso do rock, o Led Zeppelin contribuiu demais para reforçar o conceito de “samplear” outra faixa.

A popularização e a polêmica em torno disso

A utilização massiva de samples começou a acontecer no momento em que um dos gêneros mais importantes e criativos nasciam: o hip-hop. Entre os anos 70 e os anos 80, a cultura do hip-hop conquistou diversos bairros de Nova Iorque, e mais tarde outras cidades dos Estados Unidos. Através disso, DJs surgiram desconstruindo clássicos do funk, especialmente James Brown, até hoje um dos artistas que mais teve suas canções sampleadas, seja por meio do seu vocal ou da batida de suas canções.

Grandmaster Flash é um dos responsáveis pelo hip-hop ser pioneiro com os samplers digitais. (Créditos: Veja SP)

Com o passar do tempo durante essa época, o modo como se utilizava os samples mudou muito; o que antes era apenas a inserção (com algum tipo de mixagem) de instrumentais ou vocais de outras músicas acabou se tornando algo cada vez mais complexo e cheio de camadas. Grandes produtores e artistas da época (Quincy Jones, Kate Bush, Peter Gabriel) trouxeram isso para as músicas de massa, e o que nasceu no hip-hop começara a invadir outros estilos (até pelo próprio crescimento do rap e de gêneros relacionados para com o grande público).

Entretanto, nem tudo foram flores: outros artistas e produtores achavam antiético e até uma forma de roubo a utilização de samples. Outros, de forma depreciativa em relação aos produtores de hip-hop, menosprezavam o fato do sample ter auxiliado na construção de melodias. Você pode assistir a reportagem abaixo (que infelizmente não possui legenda), justamente dessa época, onde os entrevistados do ramo musical opinam sobre essa técnica.

Importante lembrar que, com o passar do tempo, leis (nos EUA e até aqui mesmo no Brasil) foram criadas para esclarecer como o direito autoral funcionaria em relação aos samples.

A evolução e o que os samples representaram e ainda representam quando usados

Muito mais do que apenas retirar o elemento de uma canção e transformá-lo, o sample pode ser visto como uma forma de homenagem, ou até mesmo de criação de identidade de uma canção ou estilo.

Um exemplo disso é o orch hit-2, um som criado à partir de um sample da música Firebird Suite, do compositor Igor Stravinsky, bastante presente em músicas da década de 80, e ainda utilizado por artistas que procuram um som mais “nostálgico” como Bruno Mars. Um mini-documentário da Vox no Youtube conta com detalhes sobre essa “marca”, clique aqui pra assistir.

A popularização dos samples fez com que outros gêneros fossem criados, e fosse uma marca destes. O house Francês, que tem como maiores representantes os duos Daft Punk e Justice, se aproveitam demais disso.

O vaporwave, movimento artístico que surgiu na virada da última década e que tinha como foco a desconstrução de referências culturais e a invenção de novos elementos, no campo musical aproveitou intensamente da técnica de samplear outras canções. Por isso, o sample também faz parte dessa “revolução cultural”.

Floral Shoppe é o disco mais famoso do movimento conhecido como vaporwave.

O sampler é um instrumento, e saber utilizá-lo é tão difícil quanto tocar uma guitarra

Há um debate em relação aos samples, especialmente quando dizemos que hoje o hip-hop e a música eletrônica são pontos de referência para outros estilos, principalmente o pop. Alguns fãs de outros gêneros, especialmente de rock clássico, frequentemente acabam depreciando a utilização de samples; para quem é contra, selecionar, utilizar e mixar recortes de outras músicas é algo “bobo”, ou que não demanda tanto conhecimento musical.

Aqui vai um relato pessoal: há alguns meses eu estava seguindo uma página relacionada à música no Facebook, e nessa página havia uma votação sobre “o melhor álbum de todos os tempos”. Claro que a opinião pra isso é muito subjetiva e toda votação desse tipo é fadada ao nada; entretanto, nessa brincadeira eu observei algo importante.

Em um dos “confrontos”, estavam na disputa My Beautiful Dark Twisted Fantasy, de Kanye West, e The Dark Side of the Moon, clássico do Pink Floyd. Nisso, várias pessoas que preferiam o disco do Pink Floyd argumentavam que as produções de Kanye quase não utilizavam “instrumentos reais”, e que o uso de samples facilitava todo o processo de produção.

Deixando isso de lado, o que se deve ter em mente é que, como em todo processo relacionado à produção artística, as coisas evoluem. Na música isso não é diferente. Com mais opções para trabalhar um sample, selecioná-lo e mixá-lo para um disco é tão trabalhoso quanto saber tocar uma guitarra ou qualquer outro instrumento.

Muitos produtores (incluindo Kanye) separam um tempo de produção somente selecionando os samples ideais para encaixar em suas músicas. Se utilizar samples realmente deixasse tudo mais fácil, todos os discos desses artistas caracterizados pelo uso massivo da técnica seriam perfeitos, o que está longe de ser um fato.

Kanye West é um especialista no uso de samples, e possui várias produções marcantes nesse sentido.

A maior invenção dos últimos 40 anos

Fato é que, ao levantar tamanha discussão e proporcionar tantas obras incríveis, os samples (como conhecemos hoje) podem ser considerados a maior invenção dos últimos 40 anos. Ele é o facilitador daquilo que mais nos encanta em uma obra de arte: a utilização de referências para criar o novo.

**Matéria escrita originalmente por mim para o blog Audiograma. Clique aqui para acessar. (:

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Rahif Souza

Estudante de Letras na UNIFESP, ama música e futebol. Nas horas vagas escreve críticas musicais e maratona animes. e-mail: rahifsouza92@gmail.com