O racismo institucional dentro do Grammy

Decisões controversas nos últimos anos escancararam um fato: o Grammy Awards é uma das premiações mais injustas com o artista negro.

Rahif Souza
5 min readJan 17, 2019
A cantora Taylor Swift, em 2016, recebendo o prêmio de ‘Álbum do Ano’ em uma das maiores polêmicas da história do Grammy — Foto: Robyn Beck/ Agence France-Presse via The New York Times

A premiação mais importante da indústria fonográfica está chegando: o Grammy Awards 2019 acontece no dia 10 de fevereiro, e reunirá os maiores nomes ligados à música. E sempre quando o assunto é Grammy, é preciso discutir algo mais importante do que quem merece ou não sair vencedor: o racismo estrutural que existe dentro da votação. Todos os indícios apontam que a votação, que é aberta para mais de 14 mil profissionais do segmento musical, possui sérios problemas que envolvem questões raciais, algo tão presente também na sociedade americana de um modo geral.

Primeiramente, é necessário apontar que essa problemática não é nova e vai além do Grammy no meio da música. Historicamente, houveram casos claros e sistêmicos de racismo, como o caso do rock & roll na década de 50/60: criado por negros, mas aceito pelo público após um branco — Elvis Presley — se apropriar do ritmo. Sobre a premiação, analisando todos os ganhadores na história, somente em dez oportunidades pessoas negras saíram-se vencedores do prêmio de melhor disco do ano (Album of the Year). A situação piora quando se olha para os últimos vinte anos: somente três ganharam a principal disputa (Lauryn Hill em 1999, OutKast em 2004 e Ray Charles em 2005). Tudo isso acaba contribuindo para as afirmações de que o Grammy possui uma política velada de racismo.

O duo OutKast, em um dos raros momentos que um negro venceu o maior prêmio do Grammy (2004) — Foto: Frederick Brown via XXL Magazine

Neil Portnow, o próprio presidente da NARAS (The National Academy of Recording Arts & Sciences, Inc.), organização de músicos responsável pela votação no Grammy, já tentou rebater essas afirmações, quando entrevistado pela revista americana Pitchfork em 2017, afirmando que “músicos, na sua humilde opinião, não escutam música baseados em gênero, raça ou etnia”. E é aí que mora a principal evidência de que a premiação é equivocada e que nela existe um viés racista: na sua grande maioria, os discos de artistas negros que não venceram como Album of the Year são os mais aclamados pela crítica especializada naquele momento em questão, o que torna essa declaração completamente contraditória.

Neil Portnow, presidente do NARAS, e Adele, vencedora do álbum do ano em 2017. — Foto: Michael Kovac via Time

O Metacritic, site que reúne todas as avaliações/críticas sobre álbuns no formato de pontuação, é um bom termômetro que indica essa preferência da NARAS por artistas brancos, vendo principalmente os últimos três anos de premiação. Em 2016, o rapper Kendrick Lamar era favorito ao Grammy com o elogiadíssimo disco To Pimp a Butterfly, mas a premiada da vez acabou sendo a cantora Taylor Swift, com o seu 1989. Comparando as duas pontuações dos respectivos álbuns no website, o absurdo é claro: o trabalho de Kendrick possui pontuação 96, enquanto que o disco de Taylor, apesar de também conter análises favoráveis, tem pontuação 76.

‘To Pimp a Butterfly’ (2015): um dos mais aclamados da década e esnobado pelo Grammy no ano seguinte — Imagem via genius.com

Na edição de 2017, Beyoncé com Lemonade (92 pontos no Metacritic) acabou sendo preterida por 25 da cantora Adele (75 pontos). Em 2018, 24k Magic do cantor Bruno Mars (70 pontos) venceu DAMN., do novamente indicado Kendrick Lamar (que possui 95 pontos no Metacritic). Será que todos os críticos, incluindo vários que também são músicos, estão errados? Ou isso só reforça o fato de que a Academia é racista? Fica claro que a segunda questão faz muito mais sentido dentro desse cenário, e que os artistas negros são desmerecidos no Grammy. (Uma observação importante no último caso: o ato de racismo está mais explícito na questão de DAMN., um álbum de hip-hop — gênero ligado à black music — ter sido preterido por 24k Magic, um álbum com maior aceitação do público branco por ter sonoridade mais pop — apesar de alguns elementos do R&B/funk — já que algumas pessoas consideram Bruno, que tem descendência latina, como negro, apesar do mesmo ter sido acusado até de apropriação cultural pelo álbum em questão por uma parte da comunidade negra nos EUA).

A grande questão, nesse caso, é o que fazer diante desse problema. Os únicos que possuem algum tipo de poder para pressionar são os próprios artistas: boicotes e ausências são importantes, já que, com isso, a audiência da premiação despencaria, uma vez que os concorrentes são a atração principal, e a Academia poderia adotar outra postura. Vale lembrar que isso já foi feito por alguns cantores, como Frank Ocean, que resolveu não concorrer com Blonde, em 2017, por não concordar com as políticas e o “sistema” que envolve o Grammy.

Frank Ocean, no Panorama Music Festival 2017: o cantor foi somente uma das dezenas de artistas que já criticaram a premiação. — Foto: Deshaun A. Craddock via Paste Magazine

Outro caso importante ocorreu ainda em 1999, quando o rapper/produtor Jay-Z também optou pelo boicote à cerimonia, alegando à MTV News que “eles não dão o respeito merecido ao hip-hop”. Nesse caso, o boicote faz ainda mais sentido: somente em 2004, com Speakerboxx/The Love Below do OutKast, um grupo ou cantor ligado ao hip-hop ganhou o Grammy de disco do ano. Mesmo com tantos outros casos de protestos que poderiam ser listados, ainda há muito à ser feito nesse sentido, e somente uma mobilização real pela maioria dos artistas e dos produtores pode surtir algum efeito.

Em um momento tão crítico e com discursos cada vez mais preconceituosos ganhando força perante o mundo, uma premiação como o Grammy deve mudar de atitude, assumir os seus erros e valorizar a diversidade cultural. Somente assim, a Academia conseguirá o respeito de toda a classe artística, da crítica e também do público.

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Rahif Souza

Estudante de Letras na UNIFESP, ama música e futebol. Nas horas vagas escreve críticas musicais e maratona animes. e-mail: rahifsouza92@gmail.com